THE CIRCLE: COMO AS ADAPTAÇÕES DE UM REALITY SHOW ESPELHAM A SOCIEDADE DE CADA PAÍS

16:08

The Circle é, quiçá, o maior Reality Show da Netflix. O que muitos não sabem é que o mesmo nasceu fora dessa plataforma, no canal britânico Channel 4, tendo, posteriormente, sido adaptado pelo serviço de streaming em três países: Brasil, Estados Unidos e França. E o verdadeiro valor de The Circle passa por ser representativo da realidade desses países, sem nunca deixar de ser fiel ao formato original.



A premissa é a mesma em todas as adaptações: vários concorrentes se juntam no mesmo prédio, mas em apartamentos diferentes. Nunca se vêem e interagem através da rede social do programa - o The Circle - com um único objectivo: atingirem o topo da popularidade. Para isso, podem usar todas as armas cibernéticas que quiserem, sendo a mais famosa a utilização de um perfil falso. Os mais populares terão, depois, o poder de eliminar um dos concorrentes.


The Circle


Transmitido originalmente em 2018, no Channel 4, o Reality Show, na sua primeira temporada, apresenta-se com uma cinematografia e edição cruas, jogando as limitações orçamentais com o estilo pouco feérico dos britânicos. A panóplia de concorrentes acaba por não destoar da da maioria dos Reality Shows ao estilo de Big Brother, nomeadamente no que toca à beleza e à busca de relações pouco sérias. The Circle acaba, efectivamente, por ser uma exploração (muitas vezes crítica) da superficialidade. Senão, veja-se: como se não bastasse a ânsia de cada um em ser popular numa plataforma digital, os concorrentes, em várias manhãs, são confrontados com notícias (umas mais sérias, sobre Brexit, e outras mais leves, como curiosidades sobre sexualidade) e a forma displicente como tratam vários destes assuntos chega a ser enervante. Muitas das vezes, focam-se em ir ao fundo dos fait-divers, mostrando, por outro lado, completo desconhecimento, desinteresse e desapego em relação às notícias mais sérias. Lembro-me do caso de um concorrente que se dizia fervoroso apoiante do Brexit, mas, quando um colega tentou trocar ideias com ele acerca desse assunto, não soube defender nenhuma das suas ideias.


A superficialidade acaba mesmo por ser triunfante na primeira temporada, uma vez que o concorrente que se fez passar pela sua própria namorada foi o grande vencedor, provando-se, por A+B, que quem vê caras não vê corações. Que, muitas vezes, as palavras e imagens que dizemos e mostramos escondem segundas intenções.

O facto de ser transmitido num canal de televisão, dependente de publicidade, faz com que a edição britânica perca ritmo, havendo uma constante recapitulação quando o intervalo comercial termina. Por outro lado, existe uma maior e mais imediata interactividade com o público, através da aplicação do programa, na qual os telespectadores podem decidir quem entra no prédio, e que tipo de perfil deve o concorrente criar no The Circle. Os comentários depreciativos da narradora em relação aos concorrentes e ao próprio formato, bem como as piadas escatológicas dos participantes são extremamente representativos da identidade e postura dos britânicos.

The Circle US


Já a segunda temporada do britânico The Circle assemelha-se, em tudo, ao formato americano. É, de resto, essa adaptação que estabelece as directrizes para a cinematografia, tema e tipo de concorrentes de todas as outras edições do Reality Show


Na versão estado-unidense é notória a preocupação pela inclusividade e heterogeneidade no elenco de concorrentes: há formas de corpo, orientações sexuais, etnias e nacionalidades para todos os gostos, abandonando-se, outrossim, o estilo politicamente incorrecto da versão britânica.


Ademais, as vidas privadas e as intenções dos participantes são bastante mais exploradas, concedendo-lhes humanidade. Pode dizer-se que, ao passo que a palavra de ordem da versão britânica era "superficialidade", a desta versão é "intenção". O exemplo mais paradigmático disto é o facto de uma concorrente entrar no jogo criando um perfil falso. Posteriormente, depois de estabelecer relações de confiança com várias colegas, a jovem sente-se culpada por estar a "viver" numa mentira e, num momento altamente comovente, faz um vídeo revelando a todos o seu verdadeiro corpo (destoante daquilo que alguns possam considerar cânone de beleza, por ser mais volumoso) e pondo a descoberto as suas inseguranças.

Com efeito, esta versão mostra que não importa o quão embrenhados no jogo de aparências fiquemos, não importa o quanto odiamos um dos nossos adversários digitais, porque tudo se dissipa quando nos mostramos cara-a-cara (que acontece no último episódio e quando alguém é expulso) e falamos com verdade.

The Circle Brasil


Esta ideia do "ser" que desconstrói de uma forma amena e conciliadora o "parecer" é aproveitada pelo formato brasileiro, sendo este o mais leve em termos de carga dramática e de jogos de intriga entre os participantes. A cor, a utilização de adereços vários e engraçados, os risos altos, o carisma de todos os intervenientes e a constante presença de música e dança levam o espírito do Brasil a qualquer parte do mundo. Uma das máximas que vários concorrentes desta versão defendem prende-se com o facto de não interessar se a pessoa com quem falamos está atrás de um perfil falso; o que interessa é o modo como ela nos trata.


Importa salientar que a bola de neve de emoções, o clímax que nunca desilude e o gancho fortíssimo dos episódios seguem, apesar de toda a leveza desta edição, a mesma estrutura de The Circle US. É praticamente impossível não ficarmos com vontade de ver o episódio seguinte, de tão bem preparados que são os capítulos.

The Circle France


Já a versão francesa do formato, apesar de também seguir essa mesma estrutura, mostra um maior cuidado no conteúdo de cada episódio, nomeadamente na exploração da intriga e dos jogos de poder virtual, do que na forma como termina. Assim, os ganchos finais são amiudadas vezes fracos ou inexistentes. Lembro-me que um dos capítulos, por ter terminado sem nenhum momento alto, teve de recorrer a um teaser dos episódios seguintes, antes dos créditos finais, de modo a lograr aguçar o apetite do espectador para visionar o episódio seguinte.


The Circle France acaba por ser extremamente cerebral, assemelhando-se a um jogo de xadrez, sendo que todos jogam com a mente de todos. A intriga e o "diz-que-disse" começam logo nos primeiros minutos do primeiro episódio, aumentando exponencialmente na segunda metade da temporada, altura em que duas participantes idosas, donas de um perfil falso, são expulsas. Uma vez que elas eram a "leveza" da primeira metade da temporada e o foco estava nelas, o Reality Show fica bem mais pesado e o público mergulha por completo no jogo, vibrando em todos os momentos de intriga entre os participantes.


Participantes, esses, que são frios e duros uns com os outros. Exemplo disto é o facto de a primeira concorrente a ser expulsa ter tido uma atitude extremamente agressiva e deselegante para com o jogador que a expulsou, quando o viu cara-a-cara. Ora, como já aflorei anteriormente, nas edições dos outros países, todos os participantes saram as quezílias virtuais uns com os outros a partir do momento em que se encontram fisicamente. Na versão francesa, claramente, há um maior desapego em termos de empatia.


Penso que o maior exemplo da diferença entre os países, representados nas várias versões de The Circle, se prende com o acesso dos concorrentes aos vídeos dos seus familiares. Todos sabemos que Reality Show que é Reality Show tem sempre aquela altura do choradinho, na qual os concorrentes vêem vídeos que lhes são enviados pelos familiares. Em The Circle isso não é excepção. Mas, ao passo que, na versão brasileira, todos têm acesso aos vídeos, chorando e berrando comme il faut, na versão americana, apenas parte dos concorrentes (a equipa vencedora de um jogo) tem essa sorte. E, na versão francesa, um único concorrente tem acesso ao vídeo da família, sendo que, nesta última versão, ao contrário das demais, mal se dá palco a esse momento íntimo, que chega a ser, inclusive, pouco comovente.


Este desapego pelo outro, na versão francesa, chega até aos últimos minutos do episódio final. Neles, ao contrário do que ocorre nas outras versões, o apresentador não está presente; apenas estão os concorrentes e a aplicação do The Circle, que lhes comunica que os últimos concorrentes expulsos puderam intervir na decisão do vencedor, concedendo-se, assim, mais um volte-face ao jogo.

É importante que salientemos o lado sociológico dos bons Reality Shows. E The Circle, pela sua componente de exploração das várias vertentes das relações interpessoais à distância, é o melhor e mais actual exemplo disso.



Channel 4 e Netflix renovaram The Circle e The Circle US para uma terceira e segunda temporadas, respectivamente, ainda sem datas de estreia anunciadas.

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